Contrato de gaveta: Economia sai caro
O famoso jeitinho brasileiro é um velho conhecido no setor imobiliário, em que alguns mutuários se arriscam para contornar a restrição legal à transferência de imóvel financiado
"Para os bancos, o devedor continua sendo o primeiro comprador, o que pode trazer problemas aos envolvidos" - José Geraldo Tardin, presidente do Ibedec
O jeitinho brasileiro encontra alternativas para quase tudo. Nem sempre recorrendo aos meios que se considerariam corretos. É o que se pode dizer dos contratos de gaveta. A prática ganhou força a partir de 14 de março de 1990, quando foi criada uma restrição legal à transferência de imóveis financiados. Isso onerou as transações, com o aumento de 20% na prestação e de 2% no saldo devedor dos financiamentos, além de sujeitar o comprador à análise e aprovação de crédito pelo banco. Ou ainda, pelo fato de o interessado no imóvel ter seu cadastro aprovado pela instituição financeira, recorrendo então a um contrato particular firmado entre o mutuário, que adquiriu o financiamento no banco, e o "gaveteiro", que está comprando o imóvel.
Ao realizar o financiamento, o mutuário torna-se proprietário do imóvel e responsável pela dívida do financiamento. A garantia desse empréstimo se dá por meio da hipoteca do bem. Assim, se o comprador não quitar o valor financiado, o imóvel responderá pela dívida, ainda que utilizado para moradia da família, pois a proteção concedida ao bem de família não é aplicável nesse caso.
Embora o contrato de gaveta seja válido entre as partes envolvidas, para os bancos, o devedor continua sendo o primeiro comprador, o que pode trazer problemas aos envolvidos. Segundo o presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), José Geraldo Tardin, o recomendável é sempre fazer uma aquisição pelos meios normais e legais.
São vários os problemas que podem decorrer dessa prática. "Uma pessoa que tenha feito financiamento pelo SFH e transferido o imóvel por contrato de gaveta, quando quiser financiar outro imóvel pelo SFH, encontrará taxas de juros mais altas, terá problemas para cálculo da margem de renda disponível para o pagamento das prestações e poderá ter até o segundo financiamento negado", aponta José Geraldo.
Outro sério risco é o cessionário, ou "gaveteiro", atrasar pagamentos do financiamento, do condomínio ou do IPTU. Para efeitos jurídicos, é o nome do titular que será negativado nos órgãos de restrição ao crédito, bem como será o titular executado judicialmente pelas dívidas, o que lhe trará inúmeros prejuízos.
Especialistas não aconselham repasse de financiamento, lembrando que os bancos não reconhecem o gaveteiro, que não tem legitimidade para recorrer à Justiça caso precise
Marcelo SantAnna/EM/D. A Press
Consultor jurídico da CMI/Secovi-MG, Carlos Adolfo diz que contrato de gaveta hoje não faz mais sentido
Na avaliação do consultor jurídico da Câmara do Mercado Imobiliário e Sindicato das Empresas do Mercado Imobiliário de Minas Gerais (CMI/Secovi-MG), Carlos Adolfo Junqueira, o contrato de gaveta é uma economia burra. Se ainda assim a pessoa se vir sem opção para adquirir um imóvel e for recorrer a esse instrumento, deve sempre buscar o auxílio de um advogado a fim de tentar antecipar e evitar problemas com cláusulas contratuais.
Ele cita, por exemplo, a possibilidade de o vendedor exigir um fiador em contrato. Nesse caso, se o comprador ficar inadimplente, poderá exigir pagamento do fiador. Já o comprador deve pedir procuração do titular para que possa, futuramente e se necessário, acionar a Justiça contra o banco. "Como o banco não reconhece o gaveteiro, ele não tem legitimidade para recorrer à Justiça em caso de erro da instituição. Seja aplicando um reajuste errado, seja em caso de o imóvel ter sido quitado, não poderá exigir da instituição a liberação da carta de hipoteca. Mas a procuração é passível de ser revogada a qualquer tempo", explica Carlos Adolfo.
O falecimento do titular também pode proporcionar um pesadelo ao comprador. Ele sempre vai encontrar problemas para quitar o imóvel e transferi-lo para si, pois é comum ter que abrir um inventário ou mesmo negociar algum pagamento para os herdeiros para conseguir a liberação do imóvel mais rápido. Até porque o seguro de vida vinculado ao financiamento quita o bem no nome dos herdeiros.
Ainda quanto aos imóveis financiados, nos contratos com equivalência salarial, as prestações são corrigidas anualmente de acordo com o aumento salarial. Se a categoria profissional do proprietário original der aumentos maiores que a do comprador, as prestações vão subir acima do que deveriam, podendo inviabilizar o pagamento da prestação e, por conseguinte, a perda do imóvel para o banco e de tudo o que já se pagou. Também não será possível ao gaveteiro a utilização do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para quitar o bem ou amortizar a dívida.
Para se prevenir quanto aos riscos desse negócio, a primeira providência é a investigação da ficha do vendedor, pois, em caso de ser acionado na Justiça por qualquer dívida, o bem poderá ser penhorado. E conferir ainda a certidão de matrícula do imóvel no cartório de registro, verificando se há parcelas em atraso no banco ou dívidas de IPTU junto à prefeitura local. O comprador deve sempre guardar os comprovantes de pagamento das parcelas do financiamento, que servirão como prova da aquisição.
"Quem compra deve estar ciente dos problemas de aumento de prestação, decorrentes do falecimento do titular e das responsabilidades que terá caso atrase o pagamento de prestações ou outros encargos, pois, além de ser compelido judicialmente a ressarcir o titular dos prejuízos, pode ser condenado a indenizá-lo em danos morais", pondera o presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), José Geraldo Tardin.
CRÉDITO FÁCIL
Para Carlos Adolfo, o contrato de gaveta não faz mais sentido. "Hoje, a facilidade de crédito é muito maior. Existem opções menos arriscadas aos interessados. Já vi contrato de gaveta em que o imóvel financiado foi transferido cinco vezes. No fim, o mutuário responsável pelo financiamento nem sabia quem estava pagando as prestações. Isso é feito por meio de um instrumento jurídico denominado subestabelecimento de procuração. É um risco danado, pois, no fim das contas, o mutuário pode ter até o Fernandinho Beira Mar agindo com sua procuração", alerta. "A cada transferência de um contrato de gaveta, devem participar todos os envolvidos anteriormente. Caso contrário, o mutuário poderá cobrar pendências do gaveteiro com quem firmou contrato, mesmo que, a essa altura, quem deveria estar pagando as prestações é um terceiro envolvido", completa.
Os poderes Executivo e Legislativo reconheceram a prática do mercado e buscaram legalizar os contratos de gaveta firmados até 25 de outubro de 1996, por força de medidas provisórias, como as de números 1.520, 1.696, 1.877, 1.878, 1.981 e, mais recentemente, pela Lei nº 10.150/00.
O Poder Judiciário reconhece que os contratos anteriores a 14 de março de 1990 podem ser repassados com a simples troca de mutuário, apenas transferindo o saldo devedor e as prestações para o novo dono, sem acréscimo algum. Pela Lei 10.150/00, os financiamentos concedidos em qualquer época, desde que os contratos de gaveta tenham sido firmados antes de 25/10/1996 - o que deve ser provado por assinatura com firma reconhecida ou pela procuração -, podem ser validados até administrativamente.
Caso o banco negue a transferência, o mutuário pode recorrer ao Judiciário, pois há entendimento dos tribunais, inclusive STJ e TRF's da 1ª e da 4ª Região, dando ganho de causa aos "gaveteiros", reconhecendo a validade dos contratos e conferindo a eles legitimidade para a busca da revisão judicial do documento.(lugarcerto-EstadoDeMinas)